Um poema por dia, título de um possível e não acontecido livro de João Cabral, título que sugere a presença diária da poesia, de toda a poesia, da poesia de um dia só.
Oh como te ex-amo como tudo se torna direção imprecisa É uma coisa terrível tudo ser tão evidente no seu vazio controverso verso Seta por dentro a onda vive de perfil o seu ex-ato imprecisando as criaturas Oh como o eu-outro aflora culminando falo contigo mas é um outro que contigo fala um outro que ex-amadamente arde ainda Não vês a curva da parábola? A face do amor é ausência de rosto.
Princípio A morta abriu o dia radioso com a cortina da sua desdedida. Partiu no meio os cabelos vagarosos escorrendo ainda de lembranças, vestiu o vestido precioso e saiu à procura, sôfrega, de outras tantas, verdadeiras vidas.
Córidon, o pastor, ardia pelo belo Aléxis, delícias de seu dono, mas não tinha o que esperar. Apenas frenquentava as faias densas, de sombrias copas, junto das quais lançava aos montes e florestas, com vã paixão, sozinho, estes lamentos mal cuidados: “Não prestas atenção, cruel Aléxis, nos meus cantos? Não tens pena de nós? Assim acabarei morrendo. Agora até os rebanhos buscam o frescor e as sombras; agora escondem-se nas sarças os lagartos verdes, e, para os ceifadores que o calor esfalfa, Téstilis ervas de cheiro ativo esmaga com serpilho e alho. Contudo, enquanto os rastros eu te sigo ao sol ardente, soam comigo os arvoredos, roucos de cigarras. Não seria melhor sofrer as iras aflitivas e os soberbos desprezos de Amarílis? ou Menalcas, moreno embora seja ele, quando tu és alvo? Não te fies demais nas cores, ó menino belo: caem as brancas alfenas, colhem-se os murtinhos negros. Tu me desprezas, nem indagas quem sou eu, Aléxis, quantos rebanhos tenho, quanto leite cor de neve; erram nos montes da Sicília as minhas mil cordeiras; não me falta no estio leite fresco, nem no inverno; eu canto o que cantava habitualmente Anfião de Dirce no ático Aracinto, se chamava os seus rebanhos. E não sou feio assim: vi-me na praia, há pouco tempo, com o mar tranquilo sob o vento: não receio Dáfnis, sendo tu mesmo o juiz, se não enganam as imagens.
Lirismo E todas as corolas que se haviam fechado como narinas sensíveis ao cheiro do dia - cheiro de gás queimado, cheiro da turba suada - abrem-se e põem-se a exalar loucos perfumes na noite. E o guarda-noturno embriagado pelo aroma tem uma crise lírica e tenta tocar uma valsa com o apito.
Era negro o menino morto sobre o negrume do asfalto. Seu ombro sangrava colorindo o brim desfeito pelos metais, um ombro magro, uma coisa indefesa, uma coisa mínima, e era toda a melancolia da terra: os castigos, fardos, humilhaçãoes, a fome. Era um pequeno ser ali presente ao fim do mundo. E nada havia a dizer, a frase se guardava presa nos músculos da garganta, próxima, urgente, desconhecida... Só aquele menino soube gritá-la entre a borracha e as ferragens, e talvez nem tenha sido um grito, nem mesmo um som, e em vão a sofrida imagem de seu corpo tentava murmurá-la em nossos olhos baços, sem fúria, sem lágrimas, triste como um remorso.