segunda-feira, 20 de junho de 2011

Paulo Mendes Campos

Sentimento do tempo


Os sapatos envelheceram depois de usados

Mas fui por mim mesmo aos mesmos
                                       [descampados

E as borboletas pousavam nos dedos de
                                        [meus pés.

As coisas estavam mortas, muito mortas,

Mas a vida tem outras portas, muitas portas.

Na terra, três ossos repousavam

Mas há imagens que não podia explicar: me ultrapassavam.

As lágrimas correndo podiam incomodar

Mas ninguém sabe dizer por que deve passar

Como um afogado entre as correntes do mar.

Ninguém sabe dizer por que o eco embrulha a voz

Quando somos crianças e ele corre atrás de nós.

Fizeram muitas vezes minha fotografia

Mas meus pais não souberam impedir

Que o sorriso se mudasse em zombaria

Sempre foi assim: vejo um quarto escuro

Onde só existe a cal de um muro.

Costumo ver nos guindastes do porto

O esqueleto funesto de outro mundo morto

Mas não sei ver coisas mais simples como a água.

Fugi e encontrei a cruz do assassinado

Mas quando voltei, como se não houvesse voltado,

Comecei a ler um livro e nunca mais tive descanso.

Meus pássaros caíam sem sentidos.

No olhar do gato passavam muitas horas

Mas não entendia o tempo àquele tempo como agora.

Não sabia que o tempo cava na face

Um caminho escuro, onde a formiga passe

Lutando com a folha.

O tempo é meu disfarce. 



sábado, 9 de abril de 2011

Lêdo Ivo

A queimada

Queime tudo o que puder:
as cartas de amor,
as contas telefônicas,
o rol de roupas sujas,
as escrituras e certidões,
as inconfidências dos confrades ressentidos,
a confissão interrompida,
o poema erótico que ratifica a impotência,
e anuncia a arterioesclerose,
os recortes antigos e as fotografias amareladas.
Não deixe aos herdeiros esfaimados
nenhuma herança de papel.
Seja como os lobos: more num covil
e só mostre à canalha das ruas
os seus dentes afiados.
Viva e morra fechado como um caracol.
Diga sempre não à escória eletrônica.
Destrua os poemas inacabados, os rascunhos,
as variantes e os fragmentos
que provocam o orgasmo tardio dos filólogos e escoliastas.
Não deixe aos catadores do lixo literário nenhuma migalha.
Não confie a ninguém o seu segredo.
A verdade não pode ser dita.


terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Álvares de Azevedo

Soneto

Um mancebo no jogo se descora,
 
Outro bêbedo passa noite e dia,
 
Um tolo pela valsa viveria,
 
Um passeia a cavalo, outro namora.
 

Um outro que uma sina má devora
 
Faz das vidas alheias zombaria,
 
Outro toma rapé, um outro espia...
 
Quantos moços perdidos vejo agora!
 

 
Oh! não proíbam, pois, no meu retiro
 
Do pensamento ao merencório luto
 
A fumaça gentil por que suspiro.
 

Numa fumaça o canto d'alma escuto... 


Um aroma balsâmico respiro,
 

Oh! deixai-me fumar o meu charuto!





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