quinta-feira, 26 de julho de 2012

Joan Brossa

Na hora

Passam dois táxis. Um
traz a indicação <<Libre-Livre>>,
o outro <<Livre-Libre>>.
Escolho o segundo.

(Trad. Ronald Polito)


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Nuno Júdice

Génese

Todo poema começa de manhã, com o sol. Mesmo
que o poema não esteja à vista (isto é céu de chuva)
o poema é o que explica tudo, o que dá luz
à terra, ao céu, e com nuvens à mistura - a luz incomoda
quando é excessiva. Depois, o poema sobe
com as névoas que o dia arrasta; mete-se pelas copas das
árvores, canta com os pássaros e corre com os ribeiros
que vêm não se sabe de onde e vão para onde
não se sabe. O poema conta como tudo é feito:
menos ele próprio, que começa por um acaso cinzento,
como esta manhã, e acaba, também por acaso,
com o sol a querer romper.

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domingo, 22 de julho de 2012

Olegário Mariano

O boi

                                     (Carducci)


Amo-te, ó pio boi! Um sentimento
De vigor e de paz tu me ofereces
Quando, impassível como um monumento,
O olhar nos campos verdes adormeces.

Preso à canga, momento por momento,
Mais útil e paciente me pareces:
O homem te ordena e tu no macilento
Volver dos olhos tristes, lhe obedeces.

Pela tua narina escra e fria
Teu espírito passa e é um hino ardente
Teu mugido cortado de agonia.

E em teu olhar que pelo azul se perde,
Se esconde longa e dolorosamente
Verde a planura do silêncio verde.




sábado, 21 de julho de 2012

Anna Akhmátova

Eu perguntei ao cuco
quantos anos viveria...
O topo do pinheiro estremeceu,
o sol banhou a relva de dourado,
mas som algum perturbou a clareira...
Voltei então para casa.
A brisa fresca acariciava
a minha fronte escaldante.


1/6/1919
Tsárskoie Seló


(Trad. Lauro Machado Coelho)


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Livro dos Cantares I (She Keng)

O vestido verde

1. É cor verde o meu vestido,
    Verde com forro amarelo.
    O mal que tenho sentido,
    Se eu pudesse vê-lo findo!

2. É cor verde o meu vestido
    Verde com roda amarela.
    Está mágoa em que hei vivido,
    Pudesse enfim esquecê-la!

3. De seda verde somente:
    Tu mesmo assim o quisesse.
    Recordo de antanho a gente,
    P'ra o mal afastar de mim.

4. Fino ou grosseiro o tecido,
    Dá frio, quando faz vento.
    Nos antigos co'o sentido,
    E já me não apoquento.

(Trad. Joaquim A. Guerra, S.J.)

Info

Adélia Prado

Para comer depois

Na minha cidade, nos domingos de tarde,
as pessoas se põem na sombra com faca e laranjas.
Tomam a fresca e riem do rapaz de bicicleta,
a campainha desatada, o aro enfeitado de laranjas:
'Eh bobagem!'
Daqui a muito progresso tecno-ilógico,
quando for impossível detectar o domingo
pelo sumo das laranjas no ar e bicicletas,
em meu país de memória e sentimento,
basta fechar os olhos:
é domingo, é domingo, é domingo.