segunda-feira, 26 de maio de 2014

Dora Ferreira da Silva

Ritornello


Sempre sangrarão as cicatrizes?
                              O sono - irmão caçula da morte -
parece um corte vibrado a esmo.
Mendicância-errância se abraçam silenciosamente.

O mito que retorna
encontra-me quase insensível
                         à dor do recomeço.
Tropeço no antigo móvel
e não o reconheço. Foi o destino
que me levou a uma outra casa?
A poltrona insegura desvia a torrente do tempo
quando alguém sentado lia
farrapos da própria alma em autores prediletos.

Tudo o que foi passado
custa a morrer nos meus guardados.


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domingo, 18 de maio de 2014

Eugénio de Castro


Un autre, plus heureux, va unir son 
sort celui de mon amie. Mais quoiqu'elle
 trompe ainsi mes plus chères espérances, 
dois-je moins aimer?
Mackensie

Tua frieza aumenta o meu desejo:
Fecho os meus olhos para te esquecer,
Mas quanto mais procuro não te ver,
Quanto mais fecho os olhos mais te vejo.

Humildemente, atrás de ti rastejo,
Humildemente, sem te convencer,
Antes sentindo para mim crescer
Dos teus desdéns o frígido cortejo.

Sei que jamais hei-de possuir-te, sei
Que outro, feliz, ditoso como um rei,
Enlaçará teu virgem corpo em flor.

Meu coração no entanto não se cansa:
Amam metade os que amam com esp'rança,
Amar sem espr'ança é o verdadeiro amor.


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quarta-feira, 23 de abril de 2014

Gilka Machado
























Bailado das ondas

Vede-as, ei-las que vêm - eternas bailarinas
para a festa noturna e fádica do luar,
segue-as o coro alegre e álacre das ondinas:
vede-as, ei-las que vêm, todas juntas, bailar.

Seios nus, braços nus que flavas serpentinas
cingem, abstratas mãos de brancura polar,
surgem, despetalando orquídeas argentinas
sobre a pelúcia azul do tapete do mar.

De quando em vez, na praia, uma a sorrir se apruma,
desliza, rodopia e alva como de espuma
desnastra, erguendo o corpo em bamboleios no ar.

E a lua, entre coxins, muito pálida e loura,
em serena mudez de nobre espectadora,
pelas ondas alonga o indiferente olhar.



Mais poesia

sábado, 5 de abril de 2014

Konstantínos Kaváfis

Volta


Volta outras vezes e domina-me,
frêmito amado, volta outras vezes e domina-me -
quando a memória do corpo despertar,
quando ao sangue retornar o desejo de outrora
e os lábios e a pele lembrarem e as mãos
sentirem-se como que tocadas de novo.

Volta outras vezes e domina-me, quando a noite
fizer com que os lábios e a pele se lembrem.

[1912]

Tradução de José Paulo Paes






Ítaca

Sobre

quinta-feira, 20 de março de 2014

Geraldo Carneiro





cancan do exílio                          

o Brasil é uma ilha de tranquilidade
o Brasil é uma ilha
o Brasil é uma
o Brasil é?
ser ou não ser, esta é a questão
será mais nobre desafiar o tempo
etc. etc. e tal
ou desafiar o aparelho policial?
eu, se fosse você
brincando brincando
escolheria a primeira hipótese
democracia é o cacete




domingo, 16 de março de 2014

Gastão Cruz

Elegia da esperança


2
Moves as palavras que palavras são
encontro diante distante e saudade
moves as palavras agora que
o mundo pois alastra e esquece
em todas as noites do corpo contando
que corpo contém palavras mais que
continente é pois distância palavra
quanto mais um homem dizendo palavras
disperso na terra na noite do mar
quanto mais de sangue depois de dizer
que a treva se faz e pode lembrar
e pode esquecer e pode a esperança
renascer ainda que disperso canse
e cante disperso diante do mar



Notícia

Entrevista

quinta-feira, 6 de março de 2014

Odylo Costa, filho



Poema da simples alegria


A alegria estava do lado de dentro da casca das 
                                                                 árvores
e subiu na manhã.


A alegria me trouxe um ramo claro de acácias
boiando numa cumbuca partida de mel.


A alegria me trouxe para perto do mar
e eu mergulhei a cabeça nos tanques da meninice.


Onde estais, arapongas, que vos ouço e não vejo?
Estais é no fundo do mar.
Estais é nas casas dos morros.
Estais é no ar.







ABL

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